quarta-feira, 16 de outubro de 2013


No caminho
José Enrico Timóteo Felipe

Em uma de minhas andanças pela vida, encontrei um sorriso.
Toda a vez que passava por aquele caminho, continuava encontrando o mesmo sorriso.
Não importava se a chuva ou o sol castigavam a terra, o sorriso sempre estava lá.
Fazia questão de todo dia passar por aquele caminho para encontrar o sorriso.
Certo dia, tomei uma decisão. Eu precisava falar com aquele sorriso.
Quando passei pelo caminho, o sorriso já não estava mais lá.
No dia seguinte, continuava sem saber onde havia ido o sorriso.
Com muita dor, decidi continuar a minha vida. Sem ver o sorriso.
Em uma de minhas andanças pela vida, encontrei uma menina.

Uma menina que também nunca me dizia nada. Ela só me mostrava seu lindo sorriso.

sábado, 5 de outubro de 2013

O bater do amor
José Enrico Timóteo Felipe

      A noite surgia lentamente, após um dos dias mais lindos de que já se ouvira notícias, naquela tarde, o sol havia mostrado toda sua magnitude, seu brilho. As folhas das árvores estavam mais verdes do que nunca, as nuvens deslizavam pelo ar e riam para os casais apaixonados, estes que tanto têm a sonhar.
     O céu ia sendo agraciado, aos poucos, pela presença das estrelas, estas que eram apenas as coadjuvantes da cena, aguardavam a entrada da personagem principal. E foi no ápice daquela cena majestosa, no quinto ato daquela famosa peça onde o casal apaixonado é obrigado a ficar separado, que ela enfim apareceu. 
     Ela, “La Gioconda” dos céus, enfim mostrou o que tanto aguardavam aqueles jovens enfeitiçados pela chama do coração. A lua parecia lançar todo seu fulgor diretamente para Valente e Bárbara. E, do brilho lunar, renasciam as memórias, o motivo de tanto sonhar.
     - Lembra de quando nos conhecemos, querida? Era meu último ano na escola, já fazia planos para o futuro, tantas carreiras a escolher, tantos rumos a tomar e eis que aquela menininha tímida, meus olhos, veio agraciar.
Durante a fala do rapaz, Bárbara havia soltado um risinho acanhado, daqueles que vêm junto com muitas memórias. Talvez algo daquela timidez citada por ele ainda vivia dentro dela.
     -É. E pensar que quase fui privado de tanta alegria. Sempre volto a pensar naquele dia. Por você me apaixonei e num novo ser realmente me transformei.
     -Você e suas palavras sempre galantes. Não pense que foi apenas você quem cresceu entre nós. Minha vida jamais foi a mesma desde que te vi. Aquele que era tão decidido e focado. Mas um tanto triste.
     -Deixe esse assunto para lá minha pequena. A tristeza, antes a anfitriã de meu coração, deu lugar ao amor, este que vem sendo o grande líder em meu interior. Por tantas noites realmente chorei, mas tudo foi bem antes. Bem antes do dia em que te encontrei.
     Enquanto a lua continuava a lançar seu brilho naquela cena, as pessoas iam e vinham aos montes, era horário de saída na principal fábrica da região e os diversos funcionários literalmente corriam para chegar ao calor de suas casas.
     O movimento era realmente intenso e o casal já não era a única coisa a cortar a vista do Parque das Laranjeiras, que ampliavam a beleza daquele lugar em sua época de frutificação.
     -Querido, vamos sair daqui. Este movimento todo não me agrada. Coisas ruins podem acontecer se ficarmos em meio a multidão...
     -Não fique assustada, Bárbara – disse o apaixonado em mais um de seus momentos de bravura – Confie em mim, tudo dará certo se continuarmos juntos.
     Fazendo um sinal positivo com a cabeça, Bárbara parecia ter se convencido com a fala do namorado, mas um quê de preocupação ainda rondava seus pensamentos.
     -Sabe – disse Valente – às vezes penso ser o mais forte dentre todos e isso fica mais evidente ainda quando estou ao seu lado. Antes, quando nem sonhava em te conhecer, sentia medo de tudo e todos, mas agora já não temo as coisas, você ajudou muito em minha transformação, você me fez o que eu sou.
-Não exagere meu bem. Como se eu pudesse controlar a natureza. Você sabe muito bem o quanto lutou para ser o que é. Não pense que pode esconder as coisas de mim, soube das histórias que aconteceram em seu passado.
- Já disse para esquecer os momentos tristes, agora só quero ser feliz ao seu lado, nada mais pode interferir em meus planos! Esperei muito por isso e ninguém tirará esse amor que tanto aquece meu coração. Amo-te.
     Após tal discurso, a pobre moça ficou sem palavras. Já não duvidava do amor que seu companheiro sentia. Isso só tornava seu próprio sentimento ainda mais forte, mais forte do que seu medo da morte.
     -O que seria de mim sem você, meu amigo, meu amante, minha vida, meu tudo...
     No entanto, enquanto tais discursos eram proferidos, algo se movia na periferia daquela cena. Os apaixonados nem notavam a aproximação daquele vulto.
     Ele se aproximava rápido, não parecia correr, porém ainda sim vinha depressa. Um abraço fora dado como expressão de todo amor que ambos apaixonados sentiam, mas talvez esse fosse o último.
     Como pode tal amor ter tanto poder? Ele que nos prende, nos fascina, nos amarra, nos envolve nas suas ternas mãos apertadas... Essa chama que apaixona! Como é lindo quem ama!
     O menino e sua rede de caça passaram despercebidos pelo casal, sua presença só fora notada quando Valente já jazia inerte dentro daquele pote de vidro. Bárbara gritava desesperava, mas a multidão abafava seu clamor.
     O menino chegava à casa feliz mostrando para sua mãe mais uma das aquisições para sua coleção de borboletas. Esta a mais fácil de ser pega, dentre as tantas enfileiradas na estante.

     O último ato acabara e a lua ainda mostrava todo seu resplendor.
Depois de um longo tempo desconectado, o blog volta a todo vapor. Espero poder postar todos os meus contos, poemas, frases e pensamentos assim como textos que eu achar interessante com frequência. Espero que todos gostem das novidades. Rico

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012


VENHA VER O PÔR-DO-SOL
Lygia Fagundes Telles

Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.

Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul‑marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinha um jeito jovial de estudante.
‑ Minha querida Raquel.
Ela encarou‑o, séria. E olhou para os próprios sapatos.
‑ Veja que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do táxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima.
Ele riu entre malicioso e ingênuo.
‑ Jamais? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância! Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete léguas, lembra?
Foi para me dizer isso que você me fez subir até aqui? ‑ perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. ‑ Hein?!
Ah, Raquel... ‑ e ele tomou‑a pelo braço. Você, está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado... Juro que eu tinha que ver ainda uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então? Fiz mal?
Podia ter escolhido um outro lugar, não? ‑Abrandara a voz. ‑ E que é isso aí? Um cemitério?
Ele voltou‑se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.
‑ Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo acrescentou apontando as crianças na sua ciranda.
Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro.
‑ Ricardo e suas idéias. E agora? Qual o programa?
Brandamente ele a tomou pela cintura.
‑ Conheço bem tudo isso, minha gente está, enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr‑do‑sol mais lindo do mundo.
Ela encarou‑o um instante. Evergou a cabeça para trás numa risada.
‑ Ver o pôr‑do‑sol!... Ali, meu Deus... Fabuloso, fabuloso!... Me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr‑do‑sol num cemitério...
Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.
‑ Raquel, minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura...
‑ E você acha que eu iria?
‑ Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um pouco numa rua afastada... ‑ disse ele, aproximando‑se mais. Acariciou‑lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram‑se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou‑lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento. ‑ Você fez bem em vir.
‑ Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar?
‑ Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.
‑ Mas eu pago.
‑ Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver um passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico.
Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.
‑ Foi um risco enorme, Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero só ver se alguma das suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.
‑ Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado ‑ prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. ‑ Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.
‑ É um risco enorme, já disse. Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros.
Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quan­tas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo.
O mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de ter‑se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrara‑se ávido pelos rachões dos mármores, invadira as alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos, medalhões de retratos esmaltados.
‑ É imenso, hein? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, que deprimente ‑ exclamou ela, atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada. ‑ Vamos embora, Ricardo, chega.
‑ Ali, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da noite, está no crepúsculo, nesse meio‑tom, nessa ambigüidade. Estou‑lhe dando um crepúsculo numa bandeja, e você se queixa.
‑ Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.
Delicadamente ele beijou‑lhe a mão.
‑ Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.
‑ É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.
‑ Ele é tão rico assim?
‑ Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...
Ele apanhou um pedregulho e fechou‑o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.
‑ Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?
Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.
‑ Sabe, Ricardo, acho que você é mesmo meio tantã... Mas apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Quando penso, não entendo como agüentei tanto, imagine, um ano!
‑ É que você tinha lido A Dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora?
‑ Nenhum ‑ respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve‑se para ler a inscrição de uma laje des­pedaçada: minha querida esposa, eternas saudades ‑ leu em voz baixa. ‑ Pois sim. Durou pouco essa eternidade.
Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.
‑ Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja ‑ disse apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda ‑, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas... Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.
Ela aconchegou‑se mais a ele. Bocejou.
‑ Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim. ‑ Deu‑lhe um rápido beijo na face. ‑Chega, Ricardo, quero ir embora.
‑ Mais alguns passos...
‑ Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! ‑ Olhou para trás. ‑ Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.
‑ A boa vida te deixou preguiçosa? Que feio ‑ lamentou ele, impelindo‑a para a frente. ‑ Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr‑do‑sol. Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.
‑ Sua prima também?

Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos... Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas... Penso agora que toda a beleza‑dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.
Vocês se amaram?
Ela me amou. Foi a única criatura que... Fez um gesto. ‑ Enfim, não tem importância.
Raquel tirou‑lhe o cigarro, tragou e depois devolveu‑o.
‑ Eu gostei de você, Ricardo.'
‑E eu te amei.. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?
Um ‑ pássaro rompeu cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.
‑ Esfriou, não? Vamos embora.
‑ Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.
Pararam diante de uma capelinha coberta: de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombros do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a ca tacumba.
Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha.
Que triste que é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?
Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu, melancólico.

‑ Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo? Mas já disse que o que mais amo neste cemitério é precisamente este abandono, esta solidão.
As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.
Ela adiantou‑se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semiobscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.
‑ E lá embaixo?
‑ Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó ‑ murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou‑se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá‑la. ‑ A cômoda de pedra. Não é grandiosa?
Detendo‑se no topo da escada, ela inclinou‑se mais para ver melhor.
‑ Todas essas gavetas estão cheias?
‑ Cheias?... Só as que têm o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe ‑ prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado embutido no centro da gaveta.
. Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.
‑ Vamos, Ricardo, vamos.
‑ Você está com medo.
‑ Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!
Ele não respondeu. Adiantara‑se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou‑se para o medalhão frouxamente iluminado.
‑ A priminha Maria Emília. Lembro‑me até do dia em que tirou esse retrato, duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e veio se exibir, estou bonita? Estou bonita?... ‑ Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente. ‑ Não é que fosse bonita, mas os olhos... Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus.
Ela desceu a escada, encolhendo‑se para não esbarrar em nada.
‑ Que frio faz aqui. E que escuro, não estou en­xergando !
Acendendo outro fósforo, ele ofereceu‑o à companheira.
‑ Pegue, dá para ver muito bem... ‑ Afastou­-se para o lado. ‑ Repare nos olhos.
Mas está tão desbotado, mal se vê que é uma moça... ‑ Antes da chama se apagar, aproximou‑a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente. ‑ Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil e oitocentos e falecida... ‑ Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel. ‑ Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos ! Seu menti...
Um baque metálico decepou‑lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso – meio inocente, meio malicioso.
‑ Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso! Brincadeira mais cretina! ‑ exclamou ela, subindo rapidamente a escada. ‑ Não tem graça nenhuma, ouviu?
Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou‑a da fechadura e saltou para trás.
Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! ‑ ordenou, torcendo o trinco. ‑ Detesto este tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!
- Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta tem uma frincha na porta. Depois vai se afastanto devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr-do-sol mais belo do mundo.
Ela sacudia a portinhola.
‑ Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente! ‑ Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou‑se a ela, dependurando‑se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. ‑ Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra...
Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque.
Boa noite, Raquel..
Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... ‑ gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá‑lo. - Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos! ‑ exigiu, examinando a fechadura nova em folha. ‑Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou‑se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou‑o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando. ‑Não, não...
Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando, as duas folhas escancaradas.
‑ Boa noite, meu anjo.
Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se, entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.
‑ Não..
Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido.: No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano:
NÃO!
Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de, um animal sendo, estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora, qualquer chamado. ‑Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda. 

                        Baleia
                                                     Graciliano Ramos
                                                                                     
A CACHORRA Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.
Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa nas base, cheia de moscas, semelhante a uma cauda de cascavel.
Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o saca-trapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito.
Sinhá Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que advinhavam desgraça e não se cansavam de repetir a mesma pergunta:
- Vão bulir com a Baleia?
Tinham visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de Fabiano afligiam-nos, davam-lhes a suspeita de que Baleia corria perigo.
Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se difereciavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o chiquiro das cabras.
Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas sinhá vitória levou-os para a cama de varas, deitou-os e esforçou-se por tapar-lhes os ouvidos: prendeu a cabeça do mais velho entre as coxas e espalmou as mãos nas orelhas do segundo. Como os pequenos resistissem, aperreou-­se e tratou de subjugá-los, resmungando com energia.
Ela também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a decisão de Fabiano era necessária e justa. Pobre da Baleia.  
Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, as pancadas surdas da vareta na bucha. Suspirou. Coitadinha da Baleia.
Os meninos começaram a gritar e a espernear. E como sinhá Vitória tinha relaxado os músculos, deixou escapar o mais taludo e soltou uma praga:  
- Capeta excomungado.
Na luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de verdade. Safadinho. Atirou um cocorote ao crânio enrolado  na coberta vermelha e na saia de ramagens.
Pouco a pouco a cólera diminuiu, e sinhá Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão.  Inconveniência deixar cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que estava sendo severa demais, achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido não houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a execução era indispensável.
Nesse momento Fabiano andava no copiar, batendo castanholas com os dedos. Sinhá Vitória encolheu o pescoço e tentou encostar os ombros às orelhas. Como isto era  impossível, levantou um pedaço da cabeça.
Fabiano percorreu o alpendre, olhando as barúna e as porteiras, açulando um cão invisível contra animais invisíveis:
-Ecô! ecô!
Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa da cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a e esfregar as peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos de Baleia, que se pôs latir desesperadamente.
Ouvindo o tiro e os latidos, sinhá Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram na caca chorando alto. Fabiano recolheu-se.  
E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras. Demorou-se aí por um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos.
Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis  recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.
Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e  quando se levantava, tinha as folhas e gravetos colados às feridas, era um bicho diferente dos outros. Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteira, mas o resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição torcida, mexeu-­se a custo, ralando as patas, cravando as unhas no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas. Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latina: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tomavam-se quase imperceptíveis.
Como o sol a encandeasse, conseguiu adiantar-se umas polegadas e escondeu-se numa nesga de sombra que ladeava a pedra.
Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava­se.  
Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha fraco e havia nele partículas de outros viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado muito.  Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam em liberdade.
Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e não experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava:  certamente os preás tinha fugido.
Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos meio vidrados, com um objeto esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.
O objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu os dentes, espiou o inimigo por baixo das pestanas caídas. Ficou assim algum tempo, depois  sossegou. Fabiano e a coisa perigosa tinham-se sumido.
Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol desaparecera. Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro espalhou-se pela vizinhança.
Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os  meninos. Estranhou a ausência deles.
Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a importância em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades.
Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde sinhá Vitória guardava o cachimbo.
Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo,  nenhum sinal de vida nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano roncava na cama de varas. Estes sons não interessavam Baleia, mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações familiares revelavam-lhe a presença deles. Agora parecia que a fazenda se tinha despovoado.
Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera  no quarto e a viagem difícil no barreiro ao fim do pátio desvaneciam-se no seu espírito.
Provavelmente estava no cozinha, entre as pedras que serviam de trempe. Antes de se deitar, sinhá Vitória retirava dali os carvões e a cinza, varria com um molho de  vassourinha o chão queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava. E, findos os cochilos, numerosos preás corriam e saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha.
A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do outro peito para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença.
Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.
Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.
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Fonte: RAMOS, Graciliano. Vidas secas, 82ªed. Rio de Janeiro: Record. 2001. p. 85-91.